sexta-feira, 17 de julho de 2015

Não se pode com elas

- Não se pode com elas, Otávio - Dirceu repetia uma das frases de que mais gostava. Havia muito de exibicionismo em sua preparação para sair na badalada noite da capital mineira. O amigo o acompanhava com olhos de tédio e inveja. Talvez um pouco mais deste último.
- Não se pode com elas, Otávio - repetia enquanto fazia o nó na gravata.
Desde o grande prêmio, Dirceu acrescentara aquele detalhe a sua vestimenta, o que causava um muxoxo em Otávio.
- Pra quê isso Dirceu?- perguntava o amigo.
- Eu preciso estar bem para elas, por que você sabe...
- Sei sim, com elas não se pode.

E os dois amigos saíam para aproveitar os prazeres que a repentina fortuna de Dirceu lhes trouxera. Otávio também aproveitava do prêmio de loteria que o amigo ganhara, mas havia um sentimento amargo em meio às benesses e belas companhias que o dinheiro trazia.
O amigo endinheirado era sempre o centro das atenções. A verdade é que os dois poderiam ser tomados por ricos, mas apenas Dirceu de fato era, e isso estava na cara de contentamento e nos gestos estrepitosos do rapaz.

O pior, para Otávio, era aquele maldito segredo que ele guardava e que poderia pôr fim à amizade cultivada desde a infância. Mas o que ele mais temia, embora tentasse repelir esse sentimento, é que a revelação poderia pôr fim à possibilidade de aproveitar a dinheirama que o amigo torrava dionisiacamente pelas ruas da capital. Dinheiro que o fazia frequentar os lugares da moda e gozar da companhia de lindas mulheres. As mesmas que o ignoravam, é verdade, nos tempos duríssimos que os dois viveram há menos de um ano.
O segredo não poderia ser revelado em hipótese alguma, pensava Otávio. Mas e quanto àquele sorriso deslumbrado do amigo? Como cercear a inveja que o comia feito um câncer maldito?

Otávio sempre protegeu Dirceu. A vida toda foi assim, mesmo quando moravam em Inimutaba.
Os dois eram colegas desde o pré-escolar. Otávio diversas vezes entrou em brigas para acudir o amigo, que era franzino e sempre tirava notas baixas. O contrário de Otávio, que sempre tirava nota dez e muitas vezes era apontado como exemplo de bom aluno em todo o grupo escolar.
Os pais dos garotos trabalhavam na fábrica de tecidos “Cedro e Cachoeira” e eles tiveram uma infância farta, auxiliados pelos lucros da empresa, que empregava mais da metade dos pais de família da pequena cidade nascida em seus arredores.

Os dois foram crescendo sob os olhares do povo da pequena cidade, que dizia: “Vejam o Dirceu, parece que nunca vai refazer”. “Ele é da mesma idade do Otávio, que já é um rapaz”. “Esse filho de Seu Idalécio parece um ratinho de tão mirrado”. “Já esse Otávio vai longe”.
Os dois eram inseparáveis. Mesmo quando começaram a paquerar as moças da cidadezinha, Otávio dava um jeito de que a donzela que estava interessada nele arranjasse uma prima feia ou mesmo a empregada da casa para ficar com o Dirceu. E ainda dizia que a garota do amigo era mais interessante que a dele, que era bonitinha, mas que não tinha bunda ou que era bonita, mas que era tapada. E o amigo quase sempre concordava. “Vamos ver se elas querem trocar da próxima vez”, mas nunca trocavam.

Quando os dois rapazes fizeram dezoito anos, a fábrica despediu o pai de Otávio e a mãe de Dirceu, e informaram que haveria mais cortes nas próximas semanas. Era o início da decadência da empresa, que vivia, naquele tempo, às voltas com dívidas severas.
Os dois amigos estavam se formando no segundo grau e partiu de Otávio o desejo de se mudarem para Belo Horizonte, a fim de continuarem os estudos. Otávio sempre quis ser engenheiro e tanto falou nisso na infância que acabou convencendo Dirceu, que agora tinha também aquela vontade já enraizada. Até parecia que sempre quisera fazer engenharia.

Coube a Otávio conversar com os pais de Dirceu, para que eles deixassem o filho partir. Os dois foram para Belo Horizonte assim que se formaram no segundo grau.
Eles alugaram um quarto em uma pensão próxima à rodoviária. A localização não poderia ser pior, já que a ideia de voltar para casa ante um obstáculo qualquer que os dois enfrentavam na capital sempre lhes parecia palpável, e estava diante de seus olhos. A efígie do terminal iluminado foi um desafio para os dois, que chegaram a passar fome nos primeiros meses em Belo Horizonte.

Era comum os dois, deitados no catre duro da pensão, ficarem listando as delícias que deveria haver em suas casas naquele momento. “Lá em casa tem aquele doce de requeijão em bolinhas”, dizia Dirceu. “Mãe com certeza fez farofa de andu hoje na janta. Pai sempre trás quando vai a Diamantina, e hoje é dia dele ir lá”, suspirava Otávio. E os dois dormiam encolhidos para se protegerem do frio, enquanto seus estômagos faziam um concerto desafinado na madrugada fria da Curitiba.
Eles frequentavam um pré-vestibular de quinta categoria pela manhã. O único que era possível pagar com o dinheiro que as famílias mandavam todo mês por intermédio de um vendedor de doces conhecido do pai de Otávio, e que fazia a linha do norte de Minas todos os meses e que passava em Inimutaba sempre que ia a Curvelo fazer entregas.

Otávio estava decidido a arrumar um emprego na parte da tarde para poder pagar um cursinho melhor para ambos. E tanto se remexeu que acabou convencendo Dirceu de que esta era a melhor coisa a se fazer naquele momento, pois o dinheiro mal dava para pagar a pensão.
Depois do cursinho, Otávio saía para procurar emprego, mas nem sempre Dirceu o acompanhava. Os dois tinham somente uma refeição na pensão e Dirceu gostava de ser o primeiro na fila do self service. A cozinheira do estabelecimento, que já se afeiçoara com Otávio, sempre guardava o almoço dele e quase sempre o rapaz voltava depois das três, sem o emprego que saíra para procurar.

Dirceu ia às vezes com Otávio, mas sempre queria voltar logo. Chegava até a inventar algum mal estar para voltar para a pensão. Em algumas ocasiões Otávio se resignava e voltava com o amigo.
Como era de se esperar, a persistência do rapaz foi premiada e Otávio arrumou mesmo um emprego e Dirceu passou a depender mais ainda do amigo, que agora sempre trazia pão e mortadela quando voltava do trabalho que arranjara numa lanchonete lá mesmo na região central, mas um pouco distante da pensão.
Otávio havia feito as contas e o salário não daria para pagar um bom cursinho para os dois e então ele se contentou em não deixar faltar nada “de comer” naquele quartinho acanhado. Além disso, uma das primeiras providências que tomou foi comprar colchões melhores.

No próximo ordenado ele pretendia comprar uma cama nova para ele em algum comércio de móveis usados e, se possível, mudar para um quarto um pouco maior lá mesmo na pensão. Comprar uma televisão também passou a ser um objetivo. Ele já estava cansado de ouvir a Inconfidência no velho radinho que trouxera de casa.
Numa certa madrugada, Otávio acordou com o barulho que Dirceu fez ao se sentar na cama.
- Que mechilenga é essa aí?- disse Otávio, com a boca sebosa de quem está há horas dormindo.
- Eu estava sonhando, e perdi o sono - Dirceu tateava com os pés o assoalho frio da pensão em busca de seu chinelo.
- Sonhando com o quê?
- Que eu havia ganhado na loteria, veja só... - Dirceu ria com a lembrança do sonho que ainda tremulava em algum canto de sua memória.
- Eu estou quase lembrando os números, deixe me ver, acho que era 33 e... e... não me lembro.
- Vai dormir que ainda temos mais duas horas de sono. De repente você sonha com os outros cinco números - Otávio riu secretamente, deu alguns socos no travesseiro para que ficasse mais macio e pegou no sono rapidamente. Dirceu, por sua vez, tomou água e demorou a pegar no sono.

Pela manhã, Otávio perguntou se Dirceu havia sonhado novamente com os números da sena e o amigo disse que não. Após revezarem o espelho trincado do lavabo do quartinho, onde fizeram suas abluções, os dois saíram para o café da manhã e logo estavam no cursinho, que ficava confinado em meio a várias salas de escritórios num prédio antigo. Desde esse dia os sonhos de Dirceu passaram a ser frequentes, mas sempre havia o detalhe dele nunca se lembrar dos números da sena quando acordava.
- Esses malditos números não me veem à cabeça quando acordo. E os sonhos têm se tornado cada vez mais reais. Eu chego a sentir o cheiro do dinheiro - dizia Dirceu, diante do olhar de censura de Otávio.
- Você devia arrumar um emprego, isso sim, e parar de sonhar com essas bobagens.

Dirceu sentiu profundamente a crítica do amigo e não tocou mais no assunto. Mas Otávio ficou espantado quando viu que Dirceu colocara uma caderneta de anotações e um lápis sobre a cadeira velha que servia de criado mudo. Com certeza pretendia anotar os números assim que acordasse e pudesse se lembrar deles. Mas, desta vez, Otávio não criticou o amigo e ignorou mais uma vez aquela bobagem.
Depois de uma semana, Otávio acordou antes que Dirceu e resolveu fazer uma brincadeira. Escreveu seis números que lhe vieram à cabeça no bloco de notas do amigo e tornou fechar os olhos esperando a reação do amigo quando acordasse e visse os números lá. Com certeza dariam boas gargalhadas. Quando Otávio acordou pela segunda vez, já viu Otávio de pé e pronto para sair.

- Que foi?- disse Otávio
- Só vou pegar um negócio ali e já volto.
Otávio olhou para o despertador e percebeu que ainda faltava meia hora para ele apitar. Cochilou um instante, mas se assustou repentinamente com a lembrança dos números que havia colocado na caderneta do amigo. Ele olhou a cadeira e lá só estava o bloco. A página havia sido arrancada.
- Que bobão esse Dirceu. Será que ele acreditou?
Otávio foi para o refeitório onde esperava encontrar o amigo, mas ele não estava lá. O rapaz chegou a perder o primeiro horário no cursinho esperando, mas nada. E foi assim durante todo o dia. Dirceu desapareceu.
Otávio já estava pensando em ligar para os pais do rapaz para informá-los de seu desaparecimento, quando o amigo chegou berrando na pensão que havia sido sorteado na sena acumulada.

A lembrança deste dia sempre causava calafrios em Otávio. Contemplar a felicidade de quem acabara de ganhar mais de vinte milhões na loteria é uma experiência única, em que se aglutinam sensações de inveja e de excitação em um turbilhão de risos e de abraços entusiasmados.
- Você conferiu os números?- perguntou Otávio, totalmente atônito.
- Claro, umas trezentas vezes - berrava Dirceu em meio à pequena multidão que se formara no refeitório da pensão.
- Eu já até depositei o dinheiro. Assim que foram sorteados os números eu conferi e corri para o banco. Eles abriram mesmo fora do expediente - Dirceu mal conseguia falar.

Alguém sugeriu que pegassem água para o rapaz e muitos disputaram o privilégio de entregar o copo para Dirceu, numa cena que dava a Otávio a certeza indubitável de que sua vida jamais seria a mesma depois daquele dia, depois que seu amigo de infância se tornara um milionário.
- Eu te falei que estava sonhando com os números - gritava. - Foi pá pum, quando acordei os números estavam lá na caderneta, como num passe de mágica.
Otávio até ameaçou dizer o que fizera, mas naquele ambiente soaria como oportunismo, como o demonstrado pelos viajantes que iriam pernoitar na pensão e que cobriam seu amigo com tapinhas nas costas.

Então Otávio guardou para si o segredo. E com o tempo percebeu que seria mesmo impossível contar a verdade.
Lá pelo oitavo chope da noite, Dirceu já estava acompanhado de uma loira lindíssima, enquanto Otávio estava predestinado a ficar com a amiga dela, uma veterinária sem nenhum encanto. A loira fez um comentário no ouvido de Dirceu, prometendo-lhe outro tipo de diversão. Ele virou-se para o amigo e disse:
- Com elas não se pode, Otávio.
Terra de Dirceu e Otávio


Dicas culturais para ganharmos na loteria da vida:

Filme: "Nove rainhas", filme argentino imperdível, e cuja história se passa em meio a loterias e outros golpes bem urdidos. 

Álbum: O disco novo da Gal Costa, "Estratosférica". Coisa fina. 

Livro: Estou lendo "O mundo sem nós", de Alan Weisman

1 comentários:

joaoleopires disse...

Muito bom Délio, você deveria voltar a postar por aqui!

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