segunda-feira, 13 de julho de 2015

O arrepio do rio


Entre os dias nove e onze de julho Matias Cardoso recebeu uma caravana de intrépidos forasteiros, gente que mesmo a despeito de ter dezenas e dezenas de décadas nas costas ainda conserva a alma de menino, feito um colibri. Gente que tem disposição para reinventar a mesma guerra, quando tantas lutas já foram perdidas nas barrancas do Velho Chico. Homens e mulheres atentos aos clarinetes que anunciam uma nova batalha. E para mais esta luta que se apresenta encanecida não faltaram voluntários.
Um, com seus longos cabelos brancos, e que tem o nome gravado na pedra e se chama tumulto, veio de Alagoas. Outro, guerrilheiro durante o período das trevas, hoje ilumina o mundo ao seu redor com a candura de um guru e o exímio raciocínio de um estrategista forjado em lutas. Outro é meio homem e meio caboclo d´água, veio das Três Marias, e mistura no peito retinto a sabedoria de um doutor e a simplicidade de um pescador. Outro parece carregar nos ombros todas as demandas do mundo e ainda assim consegue cumpri-las, uma por uma, religiosamente, e ainda conserva inabalável a fé em Nossa Senhora do Carmo. Já outro é o professor mais afeito a ir a campo em detrimento dos ambientes protocolares que existe. Para ele o pincel e o giz deveriam ser transmutados em flechas de guerreiro e guardados nas matulas dos sertanejos. Tem também o jornalista atento e paciente, que se descobriu fotógrafo talentoso e se pegou ambientalista de mão cheia e vive de surpresa em surpresa, pois todas o divertem. E tem, por último, aquele que gentilmente ciceroneou a todos, sempre com zelo e acuidade. Dizem até que ele remoçou bem uns trinta anos nos dias laboriosos passados na antiga Morrinhos, bem juntinho do Velho Chico.

Igreja recebe a exposição Vidas Áridas



De um jeito ou de outro eu falei de algumas pessoas que participaram do encontro, bem aventurados que vieram ao socorro do Chico, sem ser necessário citá-los nominalmente. Isso vale também para nosso amigo necessitado. Não é necessário se referir a ele com o pomposo nome de rio São Francisco. Basta chamá-lo de Velho Chico, pois é o único rio do país que tem apelido, tal é proximidade de sua gente com seus dilemas e ocasos.
E como os dias foram proveitosos e, de certa forma, curtos, para tanta contribuição espontânea, quase sempre essencial. Assim foram os trabalhos do grupo, uma espécie de Clube de Roma como no dizer do alagoano Jackson, que ousou pensar fora da caixa da embromação que grassa neste país. Se outrora existiu um Clube de Roma, hoje existe o do rumo, para apontar o caminho seguro a seguir, ou do remo, para lembrar que os peixes estão morrendo confinados nas chamadas lagoas marginais, mas que também podem ser chamadas popularmente de maternidades, ou berçários. Ou clube do ramo, se preferir, pois aqui tem gente qualificada à beça. Ou talvez até da rima, pois até veleidades artísticas surgem nesta plêiade celestial, que se encarregou da fecunda “Carta de Matias Cardoso”, uma encíclica feita pelos devotos de São Francisco, gente que não dispensa uma cachacinha de Salinas e nem o doce de leite vindo de Barbacena.
Sinto-me imensamente feliz em participar deste grupo, que para além de Matias Cardoso, se encontra diariamente numa esquina virtual de uma rede social para um longo bate papo, com considerações pertinentes e muita provocação de ideias, como deveriam ser todos os diálogos que se pretendem úteis. Por isso ver todas essas pessoas desconectadas, descalças de fato, no banco de areia do rio ou despidas, no sentido metafórico, de confortos, para se dedicarem a dias de trabalho e muito calor, é algo que me motiva enormemente.

Grupo de trabalho
As decisões do grupo serão divulgadas em breve, e posteriormente encaminhadas às autoridades que se pretendem competentes para dar ouvidos a esse clamor do rio. Mas para haver uma mobilização verdadeira é preciso que cada cidadão se junte a este esforço, que não carrega coloração partidária e sim ideológica. Pensando bem, há uma agremiação partidária sim: O partido do rio São Francisco.
O projeto Vidas Áridas surgiu há pouco menos de quatro anos e neste tempo se transformou numa importante referência em matéria de meio ambiente na região norte do estado de Minas. O projeto participa de importantes discussões e ações e um deles é, justamente, a defesa do Rio São Francisco, que precisa urgentemente passar por uma verdadeira revitalização. Acreditamos que neste momento, quando há um enorme descrédito em relação aos governantes, só mesmo uma iniciativa provinda da própria sociedade, e que tem à frente jornalistas, pescadores, ambientalistas, professores, acadêmicos, entre outros, é que pode despertar as mentes e os corações para um assunto tão vital. E temos conseguido muitos avanços. Um deles foi nos juntarmos com o projeto Manuelzão, que desempenha importante trabalho no rio das Velhas, um dos principais afluentes do Velho Chico, e que agora, a exemplo do rio, passa a descarregar seus conhecimentos e esforços nas águas calmas e turvas do rio da Integração Nacional, ombreado com o Vidas Áridas.

Geraldo Humberto, do Vidas Áridas, e Apolo Heringer, do Projeto Manuelzão

Outros parceiros estão conosco, como a OVIVE, a Associação dos Municípios da Área Mineira da SUDENE, além da prefeitura de Matias Cardoso, que poderá ser um laboratório para o resto da bacia, quiçá para o mundo.
Nos dias em que ficamos em Matias, paralelamente aos encontros fechados do grupo, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída em 1694, abrigou a exposição de fotografias “Salvem-me para que eu possa salvar vocês!”. Centenas de pessoas a visitaram e viveram a mesma emoção que tivemos quando singramos o Velho Chico no ano passado, de Três Marias a Malhada, na Bahia. Não poderia existir um lugar mais simbólico do que esse. Em outro momento os membros deste grupo se reuniram com a comunidade em um ginásio poliesportivo, e de novo foi exibido o documentário que retrata esta experiência de vida. O propósito de envolver a sociedade e promover educação ambiental foi alcançado.
Mas ainda teve mais. Um grupo menor seguiu até a Lagoa Comprida, onde foi observada a situação dramática que os peixes vivem, impedidos de voltar para o rio, porque o Velho Chico não consegue ter cheias para alcançar a lagoa e esparramar milhares e milhares de surubins, e outras espécies, em suas águas. Foi triste verificar que não há fiscalização suficiente e que no ambiente que deveria ser protegido do Parque Estadual da Mata Seca, são criados bovinos, há pesca ilegal e existe uma quantidade revoltante de lixo. Na prática qualquer um pode entrar lá. Situações que levaram às lágrimas o ambientalista José Gomes de Assis, que participa do grupo.
Nietsche dizia que era uma deformação do espírito, num dia luminoso, ficar em casa lendo um livro quando a Natureza estava lá fora, fresca e radiante. Levamos esta frase ao pé da letra e fomos para o encontro mais original, numa croca do rio, que é como os pescadores chamam as faixas de areia. Lá só não estava fresco e sim muito quente.  O sol estava a pino, mas ninguém ali parecia se importar.
E foi neste instante que algo fantástico aconteceu. Um fenômeno tão bonito quanto inexplicável. No fim das falas foi feita a oração do Pai Nosso e Jackson se emocionou ao liderar palavras de ordem para o grupo repetir em uníssono.
Assim que os homens se calaram, todos perceberam que o rio formou marolas onde antes só havia mansidão e dele partiu uma suave melodia provinda das águas turvas. Sincronicidade? Um sutil recado de que ele, o rio, estivera o tempo todo atento ao que era dito? Neste instante lembrei-me daquele trecho luminoso de um poema de Thiago de Mello: “Quando a verdade for flama nos olhos da multidão, o que em nós hoje é palavra no povo vai ser ação!”.
O rio se arrepiou? Inútil perguntar a quem quer que seja.
Só sei que todos ali se arrepiaram.

Onde se deu o arrepio

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