Entre
os dias nove e onze de julho Matias Cardoso recebeu uma caravana de intrépidos forasteiros,
gente que mesmo a despeito de ter dezenas e dezenas de décadas nas costas ainda
conserva a alma de menino, feito um colibri. Gente que tem disposição para
reinventar a mesma guerra, quando tantas lutas já foram perdidas nas barrancas
do Velho Chico. Homens e mulheres atentos aos clarinetes que anunciam uma nova
batalha. E para mais esta luta que se apresenta encanecida não faltaram
voluntários.
Um,
com seus longos cabelos brancos, e que tem o nome gravado na pedra e se chama
tumulto, veio de Alagoas. Outro, guerrilheiro durante o período das trevas,
hoje ilumina o mundo ao seu redor com a candura de um guru e o exímio
raciocínio de um estrategista forjado em lutas. Outro é meio homem e meio
caboclo d´água, veio das Três Marias, e mistura no peito retinto a sabedoria de
um doutor e a simplicidade de um pescador. Outro parece carregar nos ombros
todas as demandas do mundo e ainda assim consegue cumpri-las, uma por uma, religiosamente,
e ainda conserva inabalável a fé em Nossa Senhora do Carmo. Já outro é o
professor mais afeito a ir a campo em detrimento dos ambientes protocolares que
existe. Para ele o pincel e o giz deveriam ser transmutados em flechas de
guerreiro e guardados nas matulas dos sertanejos. Tem também o jornalista atento
e paciente, que se descobriu fotógrafo talentoso e se pegou ambientalista de
mão cheia e vive de surpresa em surpresa, pois todas o divertem. E tem, por último,
aquele que gentilmente ciceroneou a todos, sempre com zelo e acuidade. Dizem
até que ele remoçou bem uns trinta anos nos dias laboriosos passados na antiga
Morrinhos, bem juntinho do Velho Chico.
Igreja recebe a exposição Vidas Áridas |
De um jeito ou de outro eu falei de algumas pessoas que participaram do encontro, bem aventurados que vieram ao socorro do Chico, sem ser necessário citá-los nominalmente. Isso vale também para nosso amigo necessitado. Não é necessário se referir a ele com o pomposo nome de rio São Francisco. Basta chamá-lo de Velho Chico, pois é o único rio do país que tem apelido, tal é proximidade de sua gente com seus dilemas e ocasos.
E
como os dias foram proveitosos e, de certa forma, curtos, para tanta
contribuição espontânea, quase sempre essencial. Assim foram os trabalhos do
grupo, uma espécie de Clube de Roma como no dizer do alagoano Jackson, que
ousou pensar fora da caixa da embromação que grassa neste país. Se outrora
existiu um Clube de Roma, hoje existe o do rumo, para apontar o caminho seguro
a seguir, ou do remo, para lembrar que os peixes estão morrendo confinados nas
chamadas lagoas marginais, mas que também podem ser chamadas popularmente de
maternidades, ou berçários. Ou clube do ramo, se preferir, pois aqui tem gente
qualificada à beça. Ou talvez até da rima, pois até veleidades artísticas
surgem nesta plêiade celestial, que se encarregou da fecunda “Carta de Matias
Cardoso”, uma encíclica feita pelos devotos de São Francisco, gente que não
dispensa uma cachacinha de Salinas e nem o doce de leite vindo de Barbacena.
Sinto-me
imensamente feliz em participar deste grupo, que para além de Matias Cardoso,
se encontra diariamente numa esquina virtual de uma rede social para um longo
bate papo, com considerações pertinentes e muita provocação de ideias, como
deveriam ser todos os diálogos que se pretendem úteis. Por isso ver todas essas
pessoas desconectadas, descalças de fato, no banco de areia do rio ou despidas,
no sentido metafórico, de confortos, para se dedicarem a dias de trabalho e muito
calor, é algo que me motiva enormemente.
Grupo de trabalho |
As
decisões do grupo serão divulgadas em breve, e posteriormente encaminhadas às
autoridades que se pretendem competentes para dar ouvidos a esse clamor do rio.
Mas para haver uma mobilização verdadeira é preciso que cada cidadão se junte a
este esforço, que não carrega coloração partidária e sim ideológica. Pensando
bem, há uma agremiação partidária sim: O partido do rio São Francisco.
O
projeto Vidas Áridas surgiu há pouco menos de quatro anos e neste tempo se
transformou numa importante referência em matéria de meio ambiente na região
norte do estado de Minas. O projeto participa de importantes discussões e ações
e um deles é, justamente, a defesa do Rio São Francisco, que precisa
urgentemente passar por uma verdadeira revitalização. Acreditamos que neste
momento, quando há um enorme descrédito em relação aos governantes, só mesmo
uma iniciativa provinda da própria sociedade, e que tem à frente jornalistas, pescadores,
ambientalistas, professores, acadêmicos, entre outros, é que pode despertar as
mentes e os corações para um assunto tão vital. E temos conseguido muitos
avanços. Um deles foi nos juntarmos com o projeto Manuelzão, que desempenha
importante trabalho no rio das Velhas, um dos principais afluentes do Velho
Chico, e que agora, a exemplo do rio, passa a descarregar seus conhecimentos e
esforços nas águas calmas e turvas do rio da Integração Nacional, ombreado com
o Vidas Áridas.
Geraldo Humberto, do Vidas Áridas, e Apolo Heringer, do Projeto Manuelzão |
Outros
parceiros estão conosco, como a OVIVE, a Associação dos Municípios da Área
Mineira da SUDENE, além da prefeitura de Matias Cardoso, que poderá ser um
laboratório para o resto da bacia, quiçá para o mundo.
Nos
dias em que ficamos em Matias, paralelamente aos encontros fechados do grupo, a
Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída em 1694, abrigou a exposição
de fotografias “Salvem-me para que eu possa salvar vocês!”. Centenas de pessoas
a visitaram e viveram a mesma emoção que tivemos quando singramos o Velho Chico
no ano passado, de Três Marias a Malhada, na Bahia. Não poderia existir um
lugar mais simbólico do que esse. Em outro momento os membros deste grupo se
reuniram com a comunidade em um ginásio poliesportivo, e de novo foi exibido o
documentário que retrata esta experiência de vida. O propósito de envolver a
sociedade e promover educação ambiental foi alcançado.
Mas
ainda teve mais. Um grupo menor seguiu até a Lagoa Comprida, onde foi observada
a situação dramática que os peixes vivem, impedidos de voltar para o rio,
porque o Velho Chico não consegue ter cheias para alcançar a lagoa e esparramar
milhares e milhares de surubins, e outras espécies, em suas águas. Foi triste
verificar que não há fiscalização suficiente e que no ambiente que deveria ser protegido
do Parque Estadual da Mata Seca, são criados bovinos, há pesca ilegal e existe uma
quantidade revoltante de lixo. Na prática qualquer um pode entrar lá. Situações
que levaram às lágrimas o ambientalista José Gomes de Assis, que participa do
grupo.
Nietsche
dizia que era uma deformação do espírito, num dia luminoso, ficar em casa lendo
um livro quando a Natureza estava lá fora, fresca e radiante. Levamos esta
frase ao pé da letra e fomos para o encontro mais original, numa croca do rio,
que é como os pescadores chamam as faixas de areia. Lá só não estava fresco e
sim muito quente. O sol estava a pino,
mas ninguém ali parecia se importar.
E
foi neste instante que algo fantástico aconteceu. Um fenômeno tão bonito quanto
inexplicável. No fim das falas foi feita a oração do Pai Nosso e Jackson se
emocionou ao liderar palavras de ordem para o grupo repetir em uníssono.
Assim
que os homens se calaram, todos perceberam que o rio formou marolas onde antes
só havia mansidão e dele partiu uma suave melodia provinda das águas turvas.
Sincronicidade? Um sutil recado de que ele, o rio, estivera o tempo todo atento
ao que era dito? Neste instante lembrei-me daquele trecho luminoso de um poema
de Thiago de Mello: “Quando a verdade for flama nos olhos da multidão, o que em
nós hoje é palavra no povo vai ser ação!”.
O
rio se arrepiou? Inútil perguntar a quem quer que seja.
Só sei que todos ali se arrepiaram.
Onde se deu o arrepio |
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