quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Estado islâmico x estado lâmico

Enfim deixamos para trás uma das mais terríveis semanas de que me lembro.
Nos últimos dias, grande parte do Parque Estadual da Lapa Grande em Montes Claros queimou. E a chuva, tão aguardada, acabou chegando um tanto tarde para ajudar a debelar as chamas que assustaram e nos fizeram chorar.

Tragédia ainda maior se abateu no rio Doce, onde os dejetos da mineração empestearam um dos nossos mais importantes mananciais, levando-o a uma situação que talvez seja resolvida em décadas ou, talvez, nunca volte a ser o que era. No rastro da destruição da imundície da Samarco muitas vidas se perderam.
E na última sexta, ironicamente dia 13, o mundo voltou a ser sacudido pelo medo do terrorismo, numa tragédia ainda maior: o massacre de Paris.

Confesso que fiquei triste ao perceber que algumas pessoas, ao postarem fotos com a bandeira da França, foram hostilizadas por outras que, ao tentar comparar as tragédias, se viram no direito de julgar o sentimento alheio.

E teve ainda os que colocaram bandeiras de Minas, após o terrorismo que se abateu sobre Paris, como forma tardia de expressar seu bairrismo, em detrimento a um dos fatos mais aterradores pelo qual passou a humanidade, em todos os tempos. E, como sabemos, na “ágora” superficial da internet parece prevalecer aquela máxima: Se concordo contigo, sou sábio. Se não concordo, sou tolo. Sentimento que guarda semelhança com o próprio fundamentalismo.

Comparar o incomparável não é nenhum pouco razoável. Ainda mais que as tragédias de Mariana e Paris são absolutamente distintas.

Uma é fruto da imperícia e da negligência, erigida numa somatização assustadora de fatores externos, que passam, inclusive, pela anuência de órgãos que deveriam fiscalizar as tais barragens e não cumpriram suas obrigações. Até o fato dos governos valorizarem excessivamente o lucro em uma atividade que deixa tantos rastros de destruição como a mineração. Neste caso, no entanto, não é possível afirmar que havia intenção em se cometer algo assim, embora tudo corroborasse para isso.

Já a outra tragédia foi produzida deliberada e propositalmente, justamente numa cidade que guarda tesouros inestimáveis da história humana, berço do iluminismo e terra em que se primeiro ousou falar em democracia, através da legítima expressão que “iluminou” as trevas do Velho Mundo, e também do novo, onde estamos: Liberdade, igualdade, fraternidade.

Condoer-me por Paris, não significa absolutamente insensibilidade por Mariana, e pelo rio Doce, onde o “Instituto Terra”, capitaneado pelo fotógrafo Sebastião Salgado e a esposa dele, recuperou tantas nascentes, e é uma inspiração permanente para o projeto Vidas Áridas, que encabeço juntamente com meu amigo Geraldo Humberto e tantos outros parceiros.

Simplesmente não cabe comparação, e não é possível tentar medir sob suas réguas, o pesar dos outros. Certamente para a mãe que perdeu o filho levado pela lama do descaso não há tragédia maior. Mas para a humanidade o que aconteceu em Paris traz de volta a sensação de pavor diante de um inimigo sem rosto, que não ouve, não negocia e não poupa inocentes, e lança sua ameaça a todos, até mesmo nos Jogos Olímpicos que se aproximam, e que serão realizados no Brasil.

Por isso, quem colocou nas redes sociais a bandeirinha da França tem a minha compreensão, e quem sou eu para julgar aqueles que puseram a de Minas apenas depois dos fatos lamentáveis de Paris? Cada cabeça uma sentença. 

Quanto a mim, só me resta a bandeira do luto, que não está no perfil do meu Facebook. Ela tremula na alma. 

E o que traz um pouco de conforto é a lembrança de que hoje é domingo e, portanto, começa uma nova semana.

domingo, 6 de setembro de 2015

Vidas Áridas na Câmara dos Deputados

O projeto Vidas Áridas tem uma atuação bem definida: temos a pretensão de unir todos os políticos da região e a sociedade para tratar dos recursos hídricos com a seriedade que o assunto exige. O projeto, criado por mim e por meu colega Geraldo Humberto, tem algo fundamental no Jornalismo: a imparcialidade.

No Congresso
Mas hoje o Vidas Áridas não é somente um projeto jornalístico. Somos uma referência em matéria de meio ambiente no Norte de Minas e temos pautados nossas ações em três palavras fundamentais: Ação, ação e ação!
Além das palestras em escolas, da proteção de nascentes e da limpeza de rios, o Vidas Áridas participa efetivamente de audiências públicas.
No mês de julho os membros do projeto foram convidados para falar sobre revitalização do rio São Francisco em uma comissão da casa que trata da transposição do rio.

Fala de Geraldo Humberto
A experiência foi muito rica. O convite partiu da deputada federal Raquel Muniz, e durante a nossa fala, transmitida pela TV Câmara, dezenas de deputados e até mesmo o senador de Sergipe, Eduardo Amorim, participaram da reunião. Foi uma excelente oportunidade para mostrarmos que no norte de Minas existe um projeto bem articulado, que conta com o apoio da afiliada da Globo, onde trabalhamos, e que tem conseguido colocar a convivência com a seca como assunto principal na região. E assim deve ser diante da gravidade do quadro.
Entrevista com o presidente da Comissão
Como jornalista é uma experiência muito rica também, já que é uma oportunidade para adquirir novos conhecimentos sobre o que ocorre no mais alto patamar da política brasileira. E como ambientalista, função que tenho orgulho de ter, o espaço da Câmara é desafiador, para tentar buscar apoios e tentar sensibilizar as autoridades sobre a situação precária que vive nosso Velho Chico. Outras viagens a Brasília devem acontecer em breve, pois fomos sondados pelo deputado Zequinha Sarney, que teve reconhecida atuação no meio ambiente, para falar sobre o Vidas Áridas na comissão que ele preside e que trata do meio ambiente.
Encontro com deputado Zequinha Sarney  




Délio Pinheiro e Geraldo Humberto

Há muito a ser feito, mas os desafios costumam se tornar menores quando nos cercamos de bons combatentes e força de vontade. Sabemos que os interesses que costumam inspirar as ações de boa parte de nossos representantes passam ao largo do que acreditamos e defendemos, mas precisamos ter confiança que é possível ter um mundo melhor. E convidamos você a ser nosso aliado. 

Comunicação e alguns ruídos parte 2

Sigo minha missão de deixar registradas neste blog algumas peripécias de minha carreira na comunicação, seja na TV quanto no rádio. E estes veículos são pródigos em produzir momentos impagáveis. A TV em Montes Claros comemorará 35 anos em breve, e muitos profissionais que já passaram pela emissora voltarão em breve ao vídeo numa bem produzida série preparada por meu colega Pablo Caires, e e certamente não vão faltar relatos deste tipo. 

É da natureza humana o protagonismo de histórias curiosas, sejam elas engraçadas, curiosas ou emocionantes. E teve uma que me recordei nesta semana ao proferir uma palestra em um Fórum de Comunicação. 

Eu estava fazendo uma reportagem na Catedral de Nossa Senhora Aparecida em Montes Claros quando percebi um jovem que havia dito alguns meses antes que tinha uma mania. A obsessão dele era aparecer no vídeo da TV. Ele me contou quando nos conhecemos que já tinha conseguido aparecer mais de uma dezena de vezes só na InterTV, onde trabalho. "Teve uma vez em um acidente, quando eu dei até entrevista. Outras vezes foi em situações ao vivo, quando eu aparecia no meio da multidão. Ah, e teve outra durante a exposição agropecuária". Em resumo, o cara é um típico papagaio de pirata. E ele não está sozinho, pois muitas vezes até prefeitos e deputados lançam mão deste estratagema quando algum político mais poderoso pisa no norte de Minas.

Neste dia na igreja o cinegrafista Marcelo Pimenta, que foi meu colega na InterTV, estava filmando a fila da Eucaristia, que é quando os fieis aguardavam a hóstia que representa o sangue e o corpo de Cristo. Nosso herói  resolveu buscar a dele. Marcelo filmava e o sujeito caminhava com um olho no padre e outro na câmera. Quando o moço já havia chegado bem próximo do celebrante, meu cinegrafista parou de filmar. O sujeito então recebeu a hóstia e voltou para o seu lugar. Pelo menos até perceber que havia outra equipe de reportagem na igreja, a da TV Geraes. O cinegrafista da emissora também passou a filmar a fila da Eucaristia. O rapaz não teve dúvida: voltou para a fila e com a maior cara de pau ficou no aguardo da hóstia, repetindo o gesto que fizera minutos antes.

Admito que fiquei tenso ao ver que, de novo, ele se aproximava do padre. Mas a experiência terminou antes que ele perpetrasse essa "heresia", graças a Deus, já que o cinegrafista da Geraes parou de filmar pouco antes do rapaz se encontrar com o padre. E sem a câmera virada para ele, o jovem voltou para o seu lugar. Ele não recebeu a hóstia duas vezes, mas foi por muito pouco. 
Mas alguém dúvida que ele iria desistir se a câmera continuasse filmando?

Historinhas do rádio:

# A velha concepção de que apenas uma voz grave basta para o sujeito se tornar locutor de rádio, em detrimento, por exemplo, da formação intelectual, é responsável por momentos muito curiosos. E quando o comunicador tropeça na língua portuguesa o tombo geralmente é feio. Tem o caso daquele locutor que estava contagiado pela euforia do companheiro lá do departamento comercial, que acabara de receber a notícia de que era tio pela primeira vez. Para comemorar o fato o locutor mandou um abraço para o amigo no ar: "Abraço pro Odair, todo contente... tá que não se aguenta... tá em polvoroso porque vai ser titio pela primeira vez...".

# O departamento de jornalismo de parte significativa das rádios do interior se limita a um profissional altamente gabaritado, o "operador de tesoura". Também conhecida por "Gilette Press", esta prática consiste em recortar as notícias impressas em jornais e levá-las para o locutor ler. Isso explica a razão de uma notícia como essa ter sido escolhida para o noticiário daquela emissora. O texto falava de uma tempestade de neve nos Estados Unidos, ocorrida no estado de Ohio. O problema é que o locutor leu o nome do estado aportuguesando-o. O resultado foi muito curioso: “Uma nevasca repentina atingiu o Ôio. Várias casas foram destruídas e pelo menos uma pessoa se feriu gravemente”. E como se não bastasse, o locutor concluiu: “Essa pessoa deve ter ficado cega, eu presumo”.
# Era a estreia do locutor em uma rádio de Janaúba. Ele avisara a família e os amigos que iria começar na rádio e todos ficaram esperando para ouvi-lo. Sabendo da expectativa de todos ele resolveu que a primeira música que anunciaria na emissora seria em inglês, porquê assim era muito mais chique e causaria mais impressão. O grande hit daquele ano era a música “By my side”, da banda australiana INXS, que deve ser lido desta forma: “In Excess”, ou em bom português “Em excesso”. Pois bem, talvez tenha sido o excesso de nervosismo o responsável por esta pérola. Depois de memorizar a pronúncia da música em voz alta dizendo: “Bai mai saide, bai mai saide”, o locutor estreia no rádio: “Olá gente, bom dia, a partir de hoje estarei sempre aqui na rádio e é bom contar com seu carinho. Para começar o programa tem a música By my side, Inquis.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

A atemporal história do tempo

Estamos vivendo dias velozes. Velozes como a própria informação, que trafega em meio a um emaranhado de fios e fibras ópticas e aproxima pessoas com apenas um clique. Mas aproxima apenas virtualmente, pois a cada dia nos vemos mais e mais reféns de nossa falta de tempo e, consequentemente, longe das pessoas de que gostamos.

Enquanto os dias e semanas vão se perdendo no sorvedouro de nossas expectativas adiadas, nos vemos às voltas com nossas obrigações e reuniões inadiáveis. Então, fica a pergunta: é melhor acelerar e tentar alcançar o trem bala do destino ou deitar à sombra de uma árvore e deixar que a ociosidade se desculpe pelo caos, pelo rush e pela fumaça?

Talvez as duas opções estejam erradas. Talvez tudo que aí está esteja errado. Mas de uma coisa eu sei, não podemos negligenciar os pequenos prazeres da vida, e esses pequenos prazeres são absolutamente pessoais e intransferíveis.

Lembro-me de um livro que li, embora não me lembre o nome do autor agora- notem que eu poderia consultar o santo Google e não o fiz, pelo menos por enquanto- e que conta a história de um soldado que passa a vida toda à espera de uma guerra que nunca vem.

Enquanto isso sua vida vai sendo consumida por um forte militar em que ele se meteu e que exerce algum tipo de fascínio mortal sobre o protagonista. O nome do livro é "O Deserto dos Tártaros" e o final da obra emociona os que acompanham a vida de Giovanni Drogo. É este o nome do militar. De certa forma o fim emblemático e até certo ponto previsível do romance nos remete aos dias atuais em que muitos se dedicam obstinadamente a objetivos efêmeros, e passam sua juventude lutando por um ideal e deixam de viver a vida verdadeiramente, seja lá o que isso signifique.

Bom, a essa altura da croniqueta eu não resisti e consultei meu oráculo eletrônico. O livro é do Dino Buzatti, autor italiano que já foi comparado, com algum exagero, a Kafka graças à seu gosto pelo pessimismo e pelas soluções surreais e creio que é uma ótima alegoria sobre a passagem do tempo.

Acredito até que esse livro possa mudar sua vida, pois a mensagem clara de que não podemos desperdiçar esse milagre assombroso que é estar vivo talvez acenda uma luz qualquer aí em você, como um dia acendeu em mim, enquanto eu lia esse livro, deitado à sombra de uma árvore lá em Serranópolis, minha macondo natal.

Outro dia eu li uma entrevista antiga do Gabriel Garcia Marquez na qual ele comentava sua relação com o pai. O grande Gabo disse que antes não tinha um bom relacionamento com seu velho, mas agora que eles tinham a mesma idade se entendiam muito bem. Acho que, depois desta, não é preciso acrescentar mais nada né?

Diante da efemeridade que se perpetuem as tentativas de encontrar significado

Música do dia: Céu de Santo Amaro- Flávio Venturini e Caetano Veloso, baseada numa cantada de Bach
Filmes do dia: O clássico Sonata de outono de Ingmar Bergman e o incrível "Wiplash", que mostra o lado hardcore do jazz.
Citação dia: "A juventude é uma coisa maravilhosa. Que pena desperdiçá-la em jovens"- Bernard Shaw

terça-feira, 28 de julho de 2015

Vidas Áridas- Um breve resumo das atividades feitas até agora


O projeto Vidas Áridas surgiu da iniciativa dos jornalistas Geraldo Humberto e Délio Pinheiro, funcionários da afiliada mineira da Rede Globo nas regiões norte, noroeste, central e Vale do Jequitinhonha, a InterTV Grande Minas. O projeto começou em 2012 quando os jornalistas realizaram uma viagem ao extremo norte do estado para registrar aquela que foi, até agora, a maior seca que o estado já enfrentou em cerca de um século. O objetivo era registrar em fotografias, e também em reportagem para a emissora, este momento crítico. De volta da viagem eles lançaram em 2013 a exposição “Fome de água no sertão”, que deu início ao projeto.
Morador da zona rural de Espinosa

Antes de tudo um forte
O nome Vidas Áridas é uma homenagem a famosa obra de Graciliano Ramos, Vidas Secas. Ainda em 2012 o projeto ganhou contornos que nem os próprios criadores supunham, já que sob a bandeira do Vidas Áridas vieram se abrigar parceiros que enxergaram no projeto uma oportunidade para a sociedade exprimir suas opiniões acerca de assuntos tão importantes, como a correta utilização dos recursos hídricos.

Logomarca do Instituto
Neste mesmo ano foram realizadas as chamadas “Caravanas Vidas Áridas”, nas cidades de Serranópolis de Minas, Pai Pedro e Taiobeiras. Oportunidades em que foram discutidos, em audiências públicas, assuntos relevantes de cada lugar. Neste mesmo ano os idealizadores passaram a ministrar palestras em empresas e escolas, sempre com o objetivo de despertar a consciência ambiental das pessoas.

Vidas Áridas em Pai Pedro
Vidas Áridas em Serranópolis
Em 2013 o Vidas Áridas passou a participar de grandes discussões regionais, como a defesa da retomada das obras do reservatório de Berizal, no Alto Rio Pardo. Neste ano o Vidas Áridas passou a contar com dezenas de colaboradores eventuais e um permanente, o ambientalista Sóter Magno, que preside a ong OVIVE, Organização Vida Verde, importante parceira nesta caminhada. 
Quando a objetividade do jornalismo chega ao fim
Uma grande bandeira: A retomada das obras de Berizal
Neste ano o projeto fez várias viagens a Belo Horizonte, Brasília e a Fortaleza, no Ceará, sempre em defesa dos interesses regionais no que diz respeito ao aproveitamento consciente da água, matéria prima tão necessária e cada vez mais escassa.
Entrevista com o governador de Minas
Viagem a Fortaleza pelo Vidas Áridas
Neste mesmo ano foi feita a primeira Expedição Vidas Áridas. Durante uma semana os jornalistas, acompanhados de diversos parceiros, percorreram novamente o extremo norte do estado e o Alto Rio Pardo para uma série de reportagens para a InterTV e também para captar imagens para um nova exposição. O resultado foi surpreendente. A exposição “Quem tem sede não pode esperar” revelou regiões e pessoas devastadas pelo clima. O Vidas Áridas ganhou reconhecimento e ainda mais visibilidade. Neste ano foram feitas dezenas de palestras e o movimento passou a fazer, em definitivo, parte da vida de milhares de pessoas.
Partida da primeira expedição
Em 2014 o Vidas Áridas se lançou em um projeto ainda mais ambicioso. Foi feita novamente uma grande expedição, e o foco foi o rio São Francisco. Durante duas semanas aventureiros percorreram o rio da represa de Três Marias ao estado da Bahia, retratando as dificuldades de navegação, o sumiço dos peixes e o desalento dos barranqueiros.
Foto linda no município de Catuti
O ano não poderia ser mais apropriado para uma expedição como essa, pois foi quando ficaram escancarados os problemas gigantescos do rio. Uma das nascentes principais do Velho Chico, em São Roque de Minas, secou e nunca o lago de Três Marias ficou tão vazio. A capacidade acima do mínimo ficou inferior a três por cento. Neste quadro sombrio o trabalho ganhou repercussão nacional. Uma série de reportagens foi exibida na InterTV e também na Globo Minas e os olhos da nação se voltaram para a região.
Os idealizadores contam que, a partir deste momento, ficou impossível aceitar todos os convites para palestras e o envolvimento em causas diversas. Simplesmente os problemas eram imensuráveis e não havia condições técnicas e humanas para dar conta da demanda.
Singrando o Velho Chico
Mas longe de ser um problema, isso foi visto como uma oportunidade para posicionar o Vidas Áridas como a principal voz em defesa dos recursos hídricos, sobretudo do São Francisco, no norte de Minas. Um projeto que não tem viés político partidário e que não está a serviço de nenhum partido ou político. O projeto, criado por dois jornalistas, agora se fazia representar por milhares de pessoas que passaram a bater no peito e dizer, com orgulho: “Eu também sou Vidas Áridas”.
Antonio Jackson e Délio Pinheiro, membros do Vidas Áridas
Em 2015 foi lançada a terceira exposição fotográfica intitulada “Salvem-me para que eu possa salvar vocês”. O grito de socorro do São Francisco ficou, como as outras duas mostras, em exposição no principal centro de compras de Montes Claros e passou por diversas cidades, como Pirapora, Japonvar, Matias Cardoso e também em Brasília, Distrito Federal.
Em Pirapora
Neste momento os idealizadores já computavam dezenas e dezenas de palestras proferidas e muitas ações, mas ainda havia o desejo de tornar o Vidas Áridas ainda mais atuante. A ideia é que o movimento pudesse não apenas mobilizar, mas também realizar ações. Foi assim que surgiu o projeto “Nascente Viva”, em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Montes Claros.
No Dia Mundial da Água, o Vidas Áridas, e seus parceiros, cercaram a nascente do córrego Gameleiras em Montes Claros. Foi o projeto piloto de uma ação de longo prazo que pretende cercar todas as nascentes do município. A ideia principal é que essa ação possa inspirar outras cidades e pessoas a fazerem o mesmo com seus mananciais. As nascentes da região do Córrego Matias serão as próximas a serem cercadas pelo projeto, que se fortaleceu e hoje conta com dezenas de apoiadores diretos, entre eles o Exército Brasileiro.

Um passo em relação ao futuro
Um gesto, um exemplo
Outra ação desenvolvida em 2015 foi a limpeza de uma área do rio Vieiras, afluente do Verde Grande, no município de Montes Claros. Com parceiros, entre eles a COPASA e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, foram retiradas mais de trinta toneladas de lixo da calha do pequeno afluente, que faz parte da bacia hidrográfica do São Francisco. E outras ações como essas estão previstas para os próximos meses.

O diagnóstico
A ação humana
A limpeza
Em julho de 2015, o Vidas Áridas se juntou a um grande parceiro, o projeto Manuelzão, criado pelo doutor em educação, médico e ambientalista Apolo Heringer. Ele e outros parceiros se juntaram em Matias Cardoso para a criação de um documento que pretende nortear as ações em prol da revitalização imediata do São Francisco.
A Missiva, intitulada “Carta de Morrinhos”, numa referência ao antigo nome da primeira freguesia do estado de Minas Gerais, deve chegar às mãos das principais autoridades do país. A expectativa é que dela surjam ações emergenciais em defesa do rio. O professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Flávio Pimenta, resumiu em apenas três palavras a postura do Vidas Áridas: “Ação, ação e ação!”.
Geraldo Humberto e Apolo Heringer
Reunião no banco de areia
Também em julho os integrantes do projeto, Geraldo Humberto, Délio Pinheiro e Sóter Magno, foram convidados para falar na Comissão Externa da Transposição do São Francisco no Congresso Nacional, em Brasília. Durante quase três horas os ambientalistas bateram fortemente na tecla da importância da revitalização do rio, sob pena de não ter água suficiente para os irmãos nordestinos a serem beneficiados pelas obras da transposição, que já estariam 85% finalizadas, conforme foi informado na audiência. Já foi dito que “um anêmico não deveria doar sangue”, e é essa a impressão que temos em relação ao Rio da Integração Nacional. A audiência contou com a participação de dezenas de deputados e de um senador de Sergipe, Eduardo Amorim.

Fala de Sóter Magno em Brasília
A nova exposição do Vidas Áridas foi montada em uma das galerias da Câmara dos Deputados e centenas de pessoas, entre elas muitos deputados, viram as imagens do ocaso que vive o nosso rio mais importante.
Para 2015 ainda estão previstas várias atividades a serem desenvolvidas pelo Vidas Áridas. A exposição completa de fotografias passará por Januária e Três Marias, e em outras cidades a serem confirmadas nos próximos meses.
A entrega da “Carta de Morrinhos” deverá ser feita, entre outros lugares, em Brasília. Autoridades estaduais e nacionais com representação na bacia do São Francisco receberão o documento, e se comprometerão a defendê-lo e a implantá-lo.
O projeto ainda vai realizar uma nova expedição pelo Velho Chico. O foco desta vez serão os afluentes do São Francisco, tão castigados pela seca que já dura pelo menos cinco anos na região. Os rios Paracatu, Velhas, Jequitaí e Verde Grande são alguns que devem receber os expedicionários. A previsão é que a nova “aventura da cidadania” aconteça em outubro ou novembro.
Em novembro, entre os dias cinco e sete, em Montes Claros, o Vidas Áridas realiza um Congresso Internacional com a participação de milhares de alunos e professores, de instituições nacionais e estrangeiras. Em foco as discussões e ações a serem implementadas nos próximos anos.
Grande ação para pensar o Brasil
Outros dois grandes projetos a serem desenvolvidos nos próximos meses é a publicação de dois livros. Um deles trará as fotografias e os bastidores das duas primeiras exposições fotográficas feitas pelo projeto. E outro, obviamente, será específico sobre a “Expedição Velho Chico”.
E ainda haverá as palestras em escolas públicas, quando são levadas algumas fotografias da exposição e exibido o documentário da expedição pelo Velho Chico. Cidades como Salinas e Montalvânia já contataram o projeto, que também conta com dezenas de convites de escolas públicas, a serem atendidos nos próximos meses. Os idealizadores fazem questão de salientar que não há nenhum tipo de custo quando as palestras são feitas em locais como escolas públicas, igrejas, associações de moradores e em outros lugares onde não há fins lucrativos, como é a própria essência do Vidas Áridas.
Palestra no Colégio Unimax
Palestra em escola municipal
Palestra no Parque Municipal
Depois de passados quase quatro anos desde o início desta história, pode-se dizer que nem os idealizadores do projeto imaginavam que o Vidas Áridas ganharia tanta repercussão e relevância em tão pouco tempo. Mas isso não aconteceu por acaso. Certamente o apoio da InterTV Grande Minas é preponderante para o êxito do projeto, que se estrutura para se tornar um instituto formalizado, com vistas a potencializar ainda mais as ações já desempenhadas até aqui. “O Vidas Áridas é hoje um braço social da emissora, e para nós é uma honra contar com o apoio da empresa onde trabalhamos”, registrou Geraldo Humberto.

Antonio Jackson é entrevistado no MGTV
Outro motivo para o sucesso do Vidas Áridas é a relevância dos assuntos abordados pelo projeto e a abnegação dos que fazem parte da linha de frente, entre os quais se destacam ambientalistas, professores e acadêmicos, que podem se vangloriar de estar fazendo sua parte diante do quadro desolador criado pelo próprio homem. E se cada vez mais outras pessoas dedicarem seu tempo e seu esforço, e isso certamente inclui os políticos, poderemos minimizar os efeitos da ação deletéria do próprio ser humano em nosso planeta. E esse o chamado que o Vidas Áridas faz.Você aceita fazer parte da geração que pode ter começado a salvar a Terra? Se sim, já sabe o que fazer: Ação, ação e ação!
Délio Pinheiro e Flávio Pimenta


segunda-feira, 20 de julho de 2015

Comunicação e alguns ruídos parte 1

Um dia desses dei-me conta que minha história na comunicação já computa mais de vinte anos. Comecei como locutor na rádio Independente FM de Porteirinha em 1994, aos quinze anos de idade. Desde então passei por outras duas emissoras de Montes Claros, a 98FM e a Itatiaia. Há cinco anos, aproximadamente, deixei o rádio e me embrenhei na TV. Atualmente sou repórter e apresentador de telejornal na afiliada da Globo no norte de Minas, a InterTV Grande Minas. Se tivesse percebido antes essa efeméride pessoal, provavelmente teria reunido os amigos mais próximos e os familiares para uma pequena confraternização pelas duas décadas dedicadas a comunicação. Mas, para ser mais justo, a tal comemoração deveria ser uma festa imensa, que desse conta de reunir todas as pessoas que já passaram por minha vida nestes mais de vinte anos: ouvintes, amigos, colegas, artistas, família, telespectadores...

Quem sabe daqui quatro anos eu não pense em algo neste sentido. Tomara que as condições do país até lá fiquem mais favoráveis. Mas de toda forma não pretendo deixar passar em branco a possibilidade de deixar registrado aqui algumas histórias curiosas que aconteceram comigo, no rádio e na TV, por ocasião desta data redonda. São relatos engraçados, pitorescos, emocionantes, como é a própria dinâmica da comunicação de massa, quando sempre feita ao vivo, campo fértil para acontecimento de boas histórias. E no fim de cada pequena crônica vou publicar também algumas gafes do rádio do norte de Minas. A compilação dessas histórias se deu na conclusão do curso de Jornalismo, quando eu, minha então colega e hoje esposa Camila e meu parceiro e irmão Samuel Nunes, fizemos o trabalho de conclusão de curso com essa temática.

Pretendo utilizar nomes fictícios em alguns casos para não expor quem quer que seja a constrangimentos. Eu, particularmente, não me importo de contar os fatos curiosos que aconteceram comigo, pois os vejo como aprendizado. Então vamos aos fatos. 

Por volta de 1999 eu apresentava na rádio 98FM um programa com uma audiência enorme. O “Pagodão da 98”. Herdei a atração depois da saída do excelente radialista Luiz Montes, que deixara a emissora. O programa estava indo bem até que uma senhora ligou e pediu que eu mandasse uma música para o filho dela, que se chamava Donald. Anotei o pedido e entrei no ar com alegria e despojamento, marcas do programa. Só que fui um tanto infeliz na maneira como falei: “Agora vamos ouvir Zeca Pagodinho aqui no programa. E a Telma oferece para o filho dela, o Donald”. Até aí tudo bem. O problema é que o diabo mora nos detalhes. Complementei o anúncio dizendo que até mesmo na Disneylândia estavam ouvindo o programa. “Olha só, o pato Donald também está escuta. Aproveito e mando também para o Pateta, o Mickey, a Clarabela... Todos aí em Patópolis...”. Bastou eu fechar o microfone para o telefone tocar novamente. Era a mãe. O que você acha que ela disse. A primeira opção é “Que legal, adorei a presença de espírito”. Ou a segunda opção: “Eu posso falar com o irresponsável do locutor?”. 

Certamente a resposta correta foi a última. Ela emendou, furiosa: “Para seu governo, existe um ator chamado Donald Suterland e não é só porque o nome dele é Donald que precisa ser o pato Donald. Ela disse ainda que o filho sofria com a gozação dos colegas na escola. Eram tempos pré-bullying, mas mesmo a despeito da inexistência do termo o fato, esse tipo de babaquice já acontecia. E pior, o menino fazia análise para tentar superar esse bloqueio. “E você, deliberadamente, o chamou de Pato Donald para milhares de pessoas”. Ela respirou e finalizou: “Vou te processar!”.

O processo nunca veio. Mas isso me serviu como um tremendo aprendizado. Depois desse dia, e para todo o sempre, vou lembrar que ela se esqueceu de mencionar o Donald Trump.

Historinhas do rádio:

# O locutor se vangloriava de seu pique animado no ar e fazia disso uma das características de seu trabalho. Para ele rádio tinha que ser empolgante. Depois de dizer a hora, o radialista entrou no ar com todo o pique: “E aí galera, tá no ar o nosso programa, mas para começarmos com todo o gás tem a contagem regressiva: 1, 2, 3”.

# Em Porteirinha e em Espinosa tem duas rádios homônimas. Ambas se chamam Educadora e trazem muitas características em comum como a prestação de serviço e o apelo popular. Um comunicador trabalhava na cidade de Espinosa e sempre começava seus programas da mesma forma: “Estou chegando aqui na Educadora, em Espinosa 10 horas”. Era este o sinal que avisava aos ouvintes que a atração entrara no ar. Quis o destino que o locutor mudasse de rádio e de cidade. Ele foi trabalhar na Educadora de Porteirinha onde pretendia reproduzir o sucesso que obtivera em Espinosa. Já no primeiro dia ele começou do mesmo jeito o programa: “Estou chegando aqui na Educadora, em Espinosa 10 horas”- o locutor vacilou por um instante e arrematou: “E em Porteirinha também...”.

# O locutor era fã incondicional dos Beatles e repetiu essa gafe durante grande parte de sua carreira. Sempre que era possível programar um flashback na programação ele dava um jeito de colocar uma música do famoso quarteto de Liverpool e sempre caprichava no anúncio: “E agora você confere mais uma música da melhor banda de todos os tempos. Com vocês os The Beatles...”.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Não se pode com elas

- Não se pode com elas, Otávio - Dirceu repetia uma das frases de que mais gostava. Havia muito de exibicionismo em sua preparação para sair na badalada noite da capital mineira. O amigo o acompanhava com olhos de tédio e inveja. Talvez um pouco mais deste último.
- Não se pode com elas, Otávio - repetia enquanto fazia o nó na gravata.
Desde o grande prêmio, Dirceu acrescentara aquele detalhe a sua vestimenta, o que causava um muxoxo em Otávio.
- Pra quê isso Dirceu?- perguntava o amigo.
- Eu preciso estar bem para elas, por que você sabe...
- Sei sim, com elas não se pode.

E os dois amigos saíam para aproveitar os prazeres que a repentina fortuna de Dirceu lhes trouxera. Otávio também aproveitava do prêmio de loteria que o amigo ganhara, mas havia um sentimento amargo em meio às benesses e belas companhias que o dinheiro trazia.
O amigo endinheirado era sempre o centro das atenções. A verdade é que os dois poderiam ser tomados por ricos, mas apenas Dirceu de fato era, e isso estava na cara de contentamento e nos gestos estrepitosos do rapaz.

O pior, para Otávio, era aquele maldito segredo que ele guardava e que poderia pôr fim à amizade cultivada desde a infância. Mas o que ele mais temia, embora tentasse repelir esse sentimento, é que a revelação poderia pôr fim à possibilidade de aproveitar a dinheirama que o amigo torrava dionisiacamente pelas ruas da capital. Dinheiro que o fazia frequentar os lugares da moda e gozar da companhia de lindas mulheres. As mesmas que o ignoravam, é verdade, nos tempos duríssimos que os dois viveram há menos de um ano.
O segredo não poderia ser revelado em hipótese alguma, pensava Otávio. Mas e quanto àquele sorriso deslumbrado do amigo? Como cercear a inveja que o comia feito um câncer maldito?

Otávio sempre protegeu Dirceu. A vida toda foi assim, mesmo quando moravam em Inimutaba.
Os dois eram colegas desde o pré-escolar. Otávio diversas vezes entrou em brigas para acudir o amigo, que era franzino e sempre tirava notas baixas. O contrário de Otávio, que sempre tirava nota dez e muitas vezes era apontado como exemplo de bom aluno em todo o grupo escolar.
Os pais dos garotos trabalhavam na fábrica de tecidos “Cedro e Cachoeira” e eles tiveram uma infância farta, auxiliados pelos lucros da empresa, que empregava mais da metade dos pais de família da pequena cidade nascida em seus arredores.

Os dois foram crescendo sob os olhares do povo da pequena cidade, que dizia: “Vejam o Dirceu, parece que nunca vai refazer”. “Ele é da mesma idade do Otávio, que já é um rapaz”. “Esse filho de Seu Idalécio parece um ratinho de tão mirrado”. “Já esse Otávio vai longe”.
Os dois eram inseparáveis. Mesmo quando começaram a paquerar as moças da cidadezinha, Otávio dava um jeito de que a donzela que estava interessada nele arranjasse uma prima feia ou mesmo a empregada da casa para ficar com o Dirceu. E ainda dizia que a garota do amigo era mais interessante que a dele, que era bonitinha, mas que não tinha bunda ou que era bonita, mas que era tapada. E o amigo quase sempre concordava. “Vamos ver se elas querem trocar da próxima vez”, mas nunca trocavam.

Quando os dois rapazes fizeram dezoito anos, a fábrica despediu o pai de Otávio e a mãe de Dirceu, e informaram que haveria mais cortes nas próximas semanas. Era o início da decadência da empresa, que vivia, naquele tempo, às voltas com dívidas severas.
Os dois amigos estavam se formando no segundo grau e partiu de Otávio o desejo de se mudarem para Belo Horizonte, a fim de continuarem os estudos. Otávio sempre quis ser engenheiro e tanto falou nisso na infância que acabou convencendo Dirceu, que agora tinha também aquela vontade já enraizada. Até parecia que sempre quisera fazer engenharia.

Coube a Otávio conversar com os pais de Dirceu, para que eles deixassem o filho partir. Os dois foram para Belo Horizonte assim que se formaram no segundo grau.
Eles alugaram um quarto em uma pensão próxima à rodoviária. A localização não poderia ser pior, já que a ideia de voltar para casa ante um obstáculo qualquer que os dois enfrentavam na capital sempre lhes parecia palpável, e estava diante de seus olhos. A efígie do terminal iluminado foi um desafio para os dois, que chegaram a passar fome nos primeiros meses em Belo Horizonte.

Era comum os dois, deitados no catre duro da pensão, ficarem listando as delícias que deveria haver em suas casas naquele momento. “Lá em casa tem aquele doce de requeijão em bolinhas”, dizia Dirceu. “Mãe com certeza fez farofa de andu hoje na janta. Pai sempre trás quando vai a Diamantina, e hoje é dia dele ir lá”, suspirava Otávio. E os dois dormiam encolhidos para se protegerem do frio, enquanto seus estômagos faziam um concerto desafinado na madrugada fria da Curitiba.
Eles frequentavam um pré-vestibular de quinta categoria pela manhã. O único que era possível pagar com o dinheiro que as famílias mandavam todo mês por intermédio de um vendedor de doces conhecido do pai de Otávio, e que fazia a linha do norte de Minas todos os meses e que passava em Inimutaba sempre que ia a Curvelo fazer entregas.

Otávio estava decidido a arrumar um emprego na parte da tarde para poder pagar um cursinho melhor para ambos. E tanto se remexeu que acabou convencendo Dirceu de que esta era a melhor coisa a se fazer naquele momento, pois o dinheiro mal dava para pagar a pensão.
Depois do cursinho, Otávio saía para procurar emprego, mas nem sempre Dirceu o acompanhava. Os dois tinham somente uma refeição na pensão e Dirceu gostava de ser o primeiro na fila do self service. A cozinheira do estabelecimento, que já se afeiçoara com Otávio, sempre guardava o almoço dele e quase sempre o rapaz voltava depois das três, sem o emprego que saíra para procurar.

Dirceu ia às vezes com Otávio, mas sempre queria voltar logo. Chegava até a inventar algum mal estar para voltar para a pensão. Em algumas ocasiões Otávio se resignava e voltava com o amigo.
Como era de se esperar, a persistência do rapaz foi premiada e Otávio arrumou mesmo um emprego e Dirceu passou a depender mais ainda do amigo, que agora sempre trazia pão e mortadela quando voltava do trabalho que arranjara numa lanchonete lá mesmo na região central, mas um pouco distante da pensão.
Otávio havia feito as contas e o salário não daria para pagar um bom cursinho para os dois e então ele se contentou em não deixar faltar nada “de comer” naquele quartinho acanhado. Além disso, uma das primeiras providências que tomou foi comprar colchões melhores.

No próximo ordenado ele pretendia comprar uma cama nova para ele em algum comércio de móveis usados e, se possível, mudar para um quarto um pouco maior lá mesmo na pensão. Comprar uma televisão também passou a ser um objetivo. Ele já estava cansado de ouvir a Inconfidência no velho radinho que trouxera de casa.
Numa certa madrugada, Otávio acordou com o barulho que Dirceu fez ao se sentar na cama.
- Que mechilenga é essa aí?- disse Otávio, com a boca sebosa de quem está há horas dormindo.
- Eu estava sonhando, e perdi o sono - Dirceu tateava com os pés o assoalho frio da pensão em busca de seu chinelo.
- Sonhando com o quê?
- Que eu havia ganhado na loteria, veja só... - Dirceu ria com a lembrança do sonho que ainda tremulava em algum canto de sua memória.
- Eu estou quase lembrando os números, deixe me ver, acho que era 33 e... e... não me lembro.
- Vai dormir que ainda temos mais duas horas de sono. De repente você sonha com os outros cinco números - Otávio riu secretamente, deu alguns socos no travesseiro para que ficasse mais macio e pegou no sono rapidamente. Dirceu, por sua vez, tomou água e demorou a pegar no sono.

Pela manhã, Otávio perguntou se Dirceu havia sonhado novamente com os números da sena e o amigo disse que não. Após revezarem o espelho trincado do lavabo do quartinho, onde fizeram suas abluções, os dois saíram para o café da manhã e logo estavam no cursinho, que ficava confinado em meio a várias salas de escritórios num prédio antigo. Desde esse dia os sonhos de Dirceu passaram a ser frequentes, mas sempre havia o detalhe dele nunca se lembrar dos números da sena quando acordava.
- Esses malditos números não me veem à cabeça quando acordo. E os sonhos têm se tornado cada vez mais reais. Eu chego a sentir o cheiro do dinheiro - dizia Dirceu, diante do olhar de censura de Otávio.
- Você devia arrumar um emprego, isso sim, e parar de sonhar com essas bobagens.

Dirceu sentiu profundamente a crítica do amigo e não tocou mais no assunto. Mas Otávio ficou espantado quando viu que Dirceu colocara uma caderneta de anotações e um lápis sobre a cadeira velha que servia de criado mudo. Com certeza pretendia anotar os números assim que acordasse e pudesse se lembrar deles. Mas, desta vez, Otávio não criticou o amigo e ignorou mais uma vez aquela bobagem.
Depois de uma semana, Otávio acordou antes que Dirceu e resolveu fazer uma brincadeira. Escreveu seis números que lhe vieram à cabeça no bloco de notas do amigo e tornou fechar os olhos esperando a reação do amigo quando acordasse e visse os números lá. Com certeza dariam boas gargalhadas. Quando Otávio acordou pela segunda vez, já viu Otávio de pé e pronto para sair.

- Que foi?- disse Otávio
- Só vou pegar um negócio ali e já volto.
Otávio olhou para o despertador e percebeu que ainda faltava meia hora para ele apitar. Cochilou um instante, mas se assustou repentinamente com a lembrança dos números que havia colocado na caderneta do amigo. Ele olhou a cadeira e lá só estava o bloco. A página havia sido arrancada.
- Que bobão esse Dirceu. Será que ele acreditou?
Otávio foi para o refeitório onde esperava encontrar o amigo, mas ele não estava lá. O rapaz chegou a perder o primeiro horário no cursinho esperando, mas nada. E foi assim durante todo o dia. Dirceu desapareceu.
Otávio já estava pensando em ligar para os pais do rapaz para informá-los de seu desaparecimento, quando o amigo chegou berrando na pensão que havia sido sorteado na sena acumulada.

A lembrança deste dia sempre causava calafrios em Otávio. Contemplar a felicidade de quem acabara de ganhar mais de vinte milhões na loteria é uma experiência única, em que se aglutinam sensações de inveja e de excitação em um turbilhão de risos e de abraços entusiasmados.
- Você conferiu os números?- perguntou Otávio, totalmente atônito.
- Claro, umas trezentas vezes - berrava Dirceu em meio à pequena multidão que se formara no refeitório da pensão.
- Eu já até depositei o dinheiro. Assim que foram sorteados os números eu conferi e corri para o banco. Eles abriram mesmo fora do expediente - Dirceu mal conseguia falar.

Alguém sugeriu que pegassem água para o rapaz e muitos disputaram o privilégio de entregar o copo para Dirceu, numa cena que dava a Otávio a certeza indubitável de que sua vida jamais seria a mesma depois daquele dia, depois que seu amigo de infância se tornara um milionário.
- Eu te falei que estava sonhando com os números - gritava. - Foi pá pum, quando acordei os números estavam lá na caderneta, como num passe de mágica.
Otávio até ameaçou dizer o que fizera, mas naquele ambiente soaria como oportunismo, como o demonstrado pelos viajantes que iriam pernoitar na pensão e que cobriam seu amigo com tapinhas nas costas.

Então Otávio guardou para si o segredo. E com o tempo percebeu que seria mesmo impossível contar a verdade.
Lá pelo oitavo chope da noite, Dirceu já estava acompanhado de uma loira lindíssima, enquanto Otávio estava predestinado a ficar com a amiga dela, uma veterinária sem nenhum encanto. A loira fez um comentário no ouvido de Dirceu, prometendo-lhe outro tipo de diversão. Ele virou-se para o amigo e disse:
- Com elas não se pode, Otávio.
Terra de Dirceu e Otávio


Dicas culturais para ganharmos na loteria da vida:

Filme: "Nove rainhas", filme argentino imperdível, e cuja história se passa em meio a loterias e outros golpes bem urdidos. 

Álbum: O disco novo da Gal Costa, "Estratosférica". Coisa fina. 

Livro: Estou lendo "O mundo sem nós", de Alan Weisman